Pornogal

Filmes para adultos, actrizes despidas e liberdade de expressão. Portugal precisa de uma estrela porno. 

Não sei se eram as primeiras pulsões do cromossoma XY (i.e, erecções infantis) ou se era a influência da figura paterna – um homem com bigode de iraquiano e uma videoteca porno arrumada atrás das garrafas de whisky –, mas Paulo, o meu amigo das férias grandes, estendia o conceito de reguila muito além dos balões de água lançados sobre tipos carecas em fato de treino. Paulo, com cabelo de pagem e menos um dente incisivo, tinha oito anos, a curiosidade pornográfica de Larry Flint, e um glossário tão rico em expressões sexuais que poderia ter gravado um duplo álbum de hip hop logo em 1984. Por questões do acaso, ou por vontade do pai, Paulo e a família passavam férias junto de uma praia de nudistas. No entanto, frequentavam a praia das pessoas com roupa. Eles eram uma dessas famílias decentes e trabalhadoras, que começavam a experimentar as regalias da nova classe média – tinham um carro, férias na areia, e um enorme barco insuflável que Paulo destruiu rapidamente. Paulo foi depois punido, também rapidamente, pelas mãos peludas do seu progenitor. Duas vezes. 

Os meus avós maternos, com quem passei essas férias, gostavam de me apresentar aos amigos como o Terror da Escola Primária, tinham orgulho nas minhas façanhas de criança hiperactiva. Mas eu sabia que, ao lado de Paulo, não me cabia outro papel que ser Sancho Pança. Paulo prevaricava com impunidade e destreza, como se o seu sangue intocável fosse da casta Corleone. 

O pai de Paulo tinha binóculos para, a meio da tarde, se deitar no topo da falésia em posição de atirador especial. Lá em baixo, na praia de nudistas, via estrangeiras com mamilos rosados e pêlos púbicos da colecção pré-bikini waxing. Paulo imitava o pai, embora sem binóculos, e levou-me nessas missões de espionagem mais que uma vez. Dias mais tarde, a meio das férias, enfrentei a maior revelação de todas: Paulo avisou-me, durante o almoço, na mesa das crianças, “Vou-te mostrar uma coisa, mas não podes dizer a ninguém”. Paulo apresentava-se como o anticristo prestes a comprar-me a alma. Meia hora depois, enquanto as nossas famílias foram ao café, Paulo agarrou numa cassete, meteu-a no vídeo e estacionou-se ao lado do ecrã: “Olha para isto”. 

O comediante Chris Rock diz que os homens não podem regredir sexualmente, ou seja, que depois de experimentar certas práticas já não conseguem regressar aos prazeres simples. Se isso é verdade, aqueles cinco minutos de fornicação em formato beta e língua alemã, na televisão de casa do Paulo, vaporizaram a minha inocência e empurraram-me para um caminho sem retorno.

Muitos anos depois, em 2001, o trabalho como jornalista levou-me a uma feira do sexo em Bruxelas. Minto. Não fui um agente passivo. Essa reportagem teve tanto de acaso como a vizinhança da praia de nudistas para o pai de Paulo. Fui eu quem sugeriu a reportagem numa conversa com o editor, porque desde aquela tarde, quando Paulo abriu a cortina do espectáculo, que me senti fascinado pela pornografia. Primeiro, durante a adolescência, através da prática da masturbação e da criação de fantasias sexuais (todos os homens da minha geração começam a foder, mal e desajustadamente, como se imitassem estrelas porno). Depois, já na idade adulta, tentando perceber o que me levava a propôr artigos sobre pornografia. Seria a lúxuria a aquecer-me as virilhas?, a ilusão de sexo fácil e sem fronteiras?, um desejo secreto de ser filmado? Podia ser tudo isto, mas era também outra coisa.

Durante essa reportagem dei por mim sentado diante de McKayla Matthews, 19 anos, simpatia de cheer leader, mamas de borracha e cabelo pintado de Loiro Actriz Porno. Talvez tenha sido uma das entrevistas mais estranhas que fiz (ao lado de Miss Matthews, durante toda a nossa conversa, havia uma dezena de televisores ligados, nos quais a própria Miss Matthews aparecia a gangbanguear três culturistas). No final da conversa, ela baixou o top branco e perguntou: “Queres apalpar?” Eu, educadamente gago, disse: “Não, estou a trabalhar”, como se fosse um motorista da Carris a recusar um bagaço antes de pegar ao serviço. Hoje, sei o que me interessou em McKayla Matthews e na pornografia, mas também sei o que me impediu de apalpar a mama esquerda da protagonista de “Blondes Have More Anal Fun”: ela tinha a profissão que queria, gostava do seu estilo de vida, e não tinha complexos em dizê-lo diante de um desconhecido; eu, por outro lado, achava que tocar numa mama era suficiente para corromper toda a minha credibilidade; McKayla Matthews, pornstar, semi-nua, sentia-se mais segura e mais livre na sua pele, do que eu alguma vez me sentira na minha pele. Sobre esta conclusão, os meus amigos disseram apenas: “Foste menino”. 

Não levei a cabo uma pesquisa definitiva, mas posso dizer que Portugal deve ser a única democracia ocidental sem uma estrela porno. Quando tentei escrever um artigo sobre a pequena loja de artesanato que é a produção de filmes para adultos no nosso país, esperei toda a tarde, junto de um realizador em princípio de carreira, para que alguém aparecesse na audição. Quando já anoitecia, entrou uma senhora de 40 anos e rugas de quem lavou escadas durante 50, sacudindo o chapéu-de-chuva e limpando o vapor dos óculos. O realizador fez-lhe um par de perguntas e mandou–a para casa. Mais do que uma carreira no mundo do porno ou a concretização de uma fantasia kinky, aquela mulher precisava de dinheiro para o passe social.

Os filmes portugueses (tentei ver três) estão para a nossa vida sexual como as telenovelas portuguesas estão para a vida real: not even close. Com uma diferença: as telenovelas caramelizam a realidade e enchem os cenários com mobiliário Moviflor, enquanto que os filmes porno portugueses pioram a realidade (muito maus mesmo) e usam a mobília do apartamento do realizador.

Se houvesse uma indústria, talvez os filmes porno portugueses tratassem de temas como: Benedita, cansada das sessões de golfe de Diogo Maria, põe-se de joelhos diante da braguilha do professor de Tai Chi; Kátia da caixa do Carrefour coloca molas de roupa nos mamilos do Fábio que pratica full contact numa cave em Mem Martins; todas as terças-feiras, na arrecadação da drogaria, o senhor Pimenta possui Neide, cearense e empregada de pastelaria, enquanto a esposa Pimenta adormece a ver o “Preço Certo”.

Portugal, amestrado pelo ditador e merceeiro Oliveira Salazar, nunca foi de rebeldias. Mesmo a revolução de 74 começou porque os militares queriam um aumento de salários. Não me recordo de grandes insurgências nacionais por atentados ao pudor ou de julgamentos por obscenidade, casos como o filme “Deep Throat”, nos Estados Unidos dos anos 70. Os portugueses, quando se trata de sexo, nunca sentiram necessidade de pisar a linha. Não se enganem – em Portugal fode-se, e há muita gente experimentalista, mas o sexo continua a ser, em muitas situações, como dizer “Pilinha” entre um grupo de crianças de cinco anos; sexo continua a ser uma conversa no pronto-a-comer debaixo do escritório: “Meteu mamas novas? É mesmo vaca”. 

Não percebo: se as revistas masculinas, com miúdas quase adolescentes na capa, têm tiragens consideráveis, se o sexo continua a servir de muleta para os publicitários, se as casas de putas estão cheias, porque diabo não há dinheiro a ganhar na indústria porno? Suspeito que este será um dos raros casos em que a possibilidade de enriquecer não manda abaixo o castelo de cartas da moral. 

Com dinheiro e reconhecimento é mais fácil ser-se estrela porno, como Anastasia Mayo, com quem falei há uma semana, e cujos fãs espanhóis costumam esperar em fila por um autógrafo. Señorita Mayo aparece em programas de televisão, é abordada na rua como se fosse actriz de novela, tem orgulho no seu desempenho e mostrou-se mais articulada que alguns professores da minha antiga faculdade. O seu trabalho tem um valor lúdico e um valor comercial. Anastasia não se sente criminosa ou estigmatizada. Disse-me: “Sinto-me poderosa”.

Nunca mais encontrei Paulo após aquelas férias. Mas reconheço a importância da sua curiosidade, o valor que tinha quando assaltava a videoteca clandestina do pai, desafiando assim um par de mãos hirsutas e esbofeteadoras. O que Paulo fazia, quase por instinto, era questionar as regras, procurar conhecimento, buscar uma resposta para o desassossego e, ao mesmo tempo, sentir-se cómodo na sua pele. Precisamos de uma estrela porno pela mesma razão. 

Se a liberdade de expressão fosse um elástico, a pornografia era esse ponto em que o elástico não estica mais e corre o risco de se romper. Quando tivermos a nossa primeira estrela porno, damos um passo em frente, esticamos um pouco mais o elástico. Prometo que estarei na fila para a sessão de autógrafos.

3 Responses to “Pornogal”


  1. 1 Pit

    Impecável! Fiquei fã! Abraço

  2. 2 Vera

    Maravilhoso! Maravilhoso!

  3. 3 Hélder

    Gostei muito do teu texto. Já pensei muitas vezes no mesmo e acho que tem tudo a ver com hipocrisia. Pode-se meter os cornos a torto e a direito à mulher ou ao marido, mas não se pode assumir o sexo como uma actividade lúdica / saudável / de lazer/ comercial!
    Já agora: se a Vera for argumentista, estou disposto a reunir meios para avançarmos para uma indústria porno de “qualidade”, com histórias que interessem a pessoas de bom gosto e actores e actrizes decentes…

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